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Pessoas como nós




O fascínio pelo outro, por histórias comoventes e lições de vida, por mais clichês que sejam, juntamente com a alegria de ver gente, conhecer muita gente, de ter contato com gente e admito, disposição surreal para uma boa e longa conversa que decidi montar um espaço aqui para algo que já tenho guardado com muito carinho em mim. Pessoas nos marcam o tempo todo. Ora por alguma roupa, ora por algum gesto, ora por nos sensibilizarem. As pessoas são encantadoras tanto no que carregam de mais nobre, quanto de mais obscuro. Quero alcançar os quatro pensamentos imensuráveis com vocês, apreciar cada sentimento e sensação através da pele, da fala e do conto de outros. Quero dividir histórias dessas pessoas, que se tornaram minhas histórias também e agora serão nossas histórias. Afinal, se tratam de pessoas, pessoas como nós.


1. A senhorinha do ônibus


"[...] Prometo ser-te fiel, amar-te e respeitar-te, na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, todos os dias da nossa vida"

Em tempos de bem querença fútil e levianamente passageira, deparei-me com uma simpática senhora em algumas das muitas viagens de ônibus por Salvador.  

É preciso enxergar quem nos rodeia e principalmente, o que quem nos rodeia enxerga.
Foi em uma troca de olhares despretensiosa, ao captar o olhar vago e triste acompanhado por um longo suspiro, suspiro de quem está cansado, suspiro para abafar um pedido de socorro que eu perguntei "está tudo bem com a senhora?" que recebi todo o dilúvio de dores.
"Estou bem ... Meu marido é interno no Hospital Sarah e vou vê-lo... Todos os dias. Ele não pode ficar em casa por causa dos aparelhos necessários ao tratamento, nossa casa não tem estrutura. Então eu vou até ele. Cuido, limpo, observo. Nossos filhos? Têm suas vidas. Ele tem a mim e eu a ele. Não aguento mais fazer muita coisa, sabe? Sinto dores e as enfermeiras pouco ajudam.

A senhora é uma guerreira! 
Depois desse desabafo nos vimos em poucas oportunidades, sempre me dirigindo um sorriso montado ao entrar e deixando o "deus abençoe" ao sair. Estávamos na rotina uma da outra, pontualmente às 6:50 da manhã, até que ela parou de frequentar o ônibus, pelo menos no mesmo horário que eu. Há meses não a vejo. Me pergunto se o marido dela melhorou e recebeu alta, o que justificaria suas ausências, não precisaria mais ir ao Hospital, pergunto-me se ele faleceu e se estaria precisando de um abraço reconfortante. O fato é que não sei o que houve, que gostaria muito de saber e sinto falta da doce senhora que me mostrou que ainda é possível casais reais firmarem uma união de longa data e o amor perdurar, mesmo com todo o sofrimento, mesmo com todos os sacrifícios. 

A senhora que não me contou o nome, mas sim sua história de amor, não se queixou de se deslocar diariamente até o leito hospitalar, de morar sozinha, de se sentir só, da doença do marido ou da negligência dos filhos. Ela só expôs o quanto precisava e queria estar do lado dele e não desistiria de buscar, não desistiria deles. 

Enquanto estamos banhados de amor líquido, o casal permanece intacto na secura de suas peles e na solidez sacramentada, já experimentaram as gotas, correr por entre elas, mas hoje preferem a calmaria, a espera do sol abrir novamente, sem riscos, porque enquanto estiverem na companhia um do outro valerá a pena, para sempre.

Pesa, não apenas, tão somente a massa corpórea, a aliança pesa. O elo para toda uma vida

Muito prazer em conhecê-la. Seja feliz! 
 

2. Rara, a menina Pan


| Por Claudia Tremblay |

Estava eu, na tranquilidade dos meus pensamentos na medida que 3 crianças brincando ao meu lado permitiam, até que uma delas me questionou e a tranquilidade se esvaiu. 

"Isa, você é criança?" 

A questão é que ela não me perguntou quantos anos eu tinha e tirou suas próprias conclusões, não reparou na discrepância da minha figura de observadora e a deles juntos gritando e pulando, ou ainda minhas feições ou minha altura, em comparação a ela mesma (ainda que eu seja baixinha). A questão é que ela não pensou em nenhuma dica óbvia para a resolução da sua dúvida, para mim tão absurda. Isso tudo porque a menina que tem o nome Rara, queria uma companheira de brincadeira, não saber em que ano eu nasci ou se já posso dirigir. 

Sou criança o suficiente para sorrir com os sorrisos deles, para me arriscar a acompanhar o pique dos jogos, para ter uma conversa divertida, ainda que ilógica com eles e por que não, para brincar !?

Sou adulta o suficiente para mediar a intensidade das peripécias, auxiliar em alguma dificuldade de locomoção ou ainda vigiar por segurança. 

Edna St. Vicent Millay certa vez disse que "A infância não vai do nascimento até certa idade e a certa altura a criança já está crescida [...] A infância é o reino onde ninguém morre."

Essa citação me veio a mente assim que recebi a pergunta de Rara, mas fiquei sem ação, não a respondi nada, só pensei muito em várias possíveis respostas. Naquele momento ela pode ter até se sentido ignorada, mas foi a responsável por uma das perguntas mais marcantes, embora simples, da minha vida, tanto que guardo-a com carinho até hoje e anseio um dia poder respondê-la. Provavelmente ela não se lembrará de um dia ter me feito tal pergunta, provavelmente não nos veremos mais, porém quero respondê-la, nem que seja como autorreflexão ou compartilhando com vocês. 

Sempre acreditei que "criança", "adolescente", "adulto" e "idoso" transcende o número de velas apagadas durante a vida, exige critérios bem mais elaborados como: postura, maturidade, bom senso, discernimento, consciência, responsabilidade e talvez o mais importante seja o auto conhecimento, o auto reconhecimento. 

Então, que saibamos nos reconhecer e nos permitir, afinal, parafraseando Rubem Alves, o que seria da vida sem longas e silenciosas metamorfoses?

Muito prazer em conhecê-la. Seja feliz!

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